Austin-Sparks.net

A Tragédia de uma Tarefa Inacabada

por T. Austin-Sparks

Publicado pela primeira vez na revista "A Witness and A Testimony", Nov-Dez 1969, Vol. 47-6. Origem: "The Tragedy of an Unfinished Task". (Traduzido por Maria P. Ewald)

Hoje à noite meditaremos no Livro de Juízes. Que livro diferente de Josué! Em minha opinião, o Livro dos Juízes é o livro mais terrível da Bíblia! Por que? Porque é o livro da tarefa inacabada.

No livro de Josué, o povo de Israel entrou na terra, com uma maravilhosa história de sucessivas vitórias, movendo-se cada vez mais na direção do pleno propósito de Deus. Então, antes de terminar a tarefa, eles se estabeleceram. Nos últimos capítulos do livro de Josué, vemos as pessoas se estabelecendo antes que a tarefa fosse concluída. Aquelas pessoas ouviram e responderam positivamente ao grande chamado de Deus e ao Seu propósito. Foram tão longe, e antes mesmo de chegar ao fim, se estabeleceram. O Livro dos Juízes vem logo a seguir, e esse livro registra a tragédia da tarefa inacabada.

Nenhum de nós pode dizer que não vê nada parecido no cristianismo de nossos dias! Vemos muitos cristãos iniciando maravilhosamente, com a visão do grande propósito de Deus, e percebendo o apelo das palavras no Novo Testamento: "chamados segundo o seu propósito" (Rm 8:28). Essa é uma visão maravilhosa! "Segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Ef 3:11). Essa ideia traz um grande apelo as pessoas, e elas respondem com o coração. Eles seguem em frente, e muitos param cedo demais, por perderem a visão, a inspiração, o senso de propósito e a energia para continuar. Podemos até dizer, a respeito de alguns: 'O semblante deles mudou. Algo se perdeu. Outrora eram tão positivos e ocupados com o chamado celestial, mas algo aconteceu'. Essas pessoas podem não estar totalmente conscientes do ocorrido, e não diriam que algo aconteceu, mas isso é bastante evidente. Eles perderam alguma coisa, e não percebemos uma resposta deles agora, como no passado. Eles não estão tão interessados, a visão celestial desvaneceu em suas vidas. Isso é verdade para muitos cristãos, pode ser real para cada um de nós também.

O Livro de Juízes é nosso guia nesse assunto. O que digo agora não está em tom de julgamento - embora estejamos tratando do Livro dos Juízes! Tenho muita compaixão do povo que ali viveu. Ah, sim, sei o quão errado foi tudo aquilo, e como este livro detalha seu fracasso. Sei o quanto o Senhor se entristeceu com isso tudo, mas, por experiência própria, não posso deixar de ser solidário, pois acho que os compreendo.

Fadiga na Batalha

Por que essas pessoas pararam, antes de terminar a tarefa que lhes fora designada? Acho que muito provavelmente foi por terem se cansado de fazer o bem. A batalha se estendeu ao longo de muito anos e foi muito exaustiva. Mal conseguiam uma vitória, tinham que começar a lutar novamente. Eles não tiveram muito descanso entre uma batalha e a outra. Foi uma guerra prolongada, eles se cansaram, e com isso perderam a visão, o coração e a iniciativa.

Fico feliz que, junto à todas as afirmações fortes do Novo Testamento, termos também outras muito ternas e compreensivas a esse respeito: "E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos"(Gl 6:9); "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão" (1Co 15:58); "Porque Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome" (Hb 6:10). Quantas textos semelhantes a esses! E Jesus disse aos seus discípulos, quando estavam prestes a ser levados à batalha: "Não se turbe o vosso coração!" (Jo 14:1). Também temos as palavras do Senhor a Josué: "Sê forte e corajoso; não temas, nem te espantes" (Jo 1:9). Mais uma vez, o Senhor Jesus disse aos Seus discípulos: "Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo" (Mt 24:13).

Essas pessoas no Livro dos Juízes foram desencorajadas pelo cansaço - e todos somos suscetíveis a isso! Às vezes não é fácil desistir - ou talvez deva dizer que não é difícil desistir! Isso porque não queremos sair da batalha e, ao mesmo tempo, queremos sair dela. A batalha está no nosso interior, e um homem como o apóstolo Paulo sofreu esse conflito. Ele disse: ‘Realmente não sei o que fazer! Tenho um forte desejo de partir e estar com o Senhor para sair da batalha, entretanto sei que o meu dever para com o Senhor é continuar nela. Não sei se continuo ou desisto!’. Digo que essa é uma possível tentação para todo cristão, e o Senhor sabe disso! O Novo Testamento tem grande quantidade de informação a esse respeito.

A primeira razão pela qual essas pessoas se estabeleceram cedo demais, então, foi pelo desânimo. Não foi porque não tiveram vitórias - pelo contrário, foram muitas - mas porque disseram para si mesmos: 'Não há um fim para esta batalha! Parece interminável! Então, devido ao cansaço e desânimo, eles se estabeleceram muito cedo.

Tenho certeza de que o Livro de Juízes demonstra isso. Toda vez que essas pessoas se sentiam tocadas novamente para continuar, descobriam que o Senhor estava pronto para seguir com elas. Este livro é uma imagem de uma vida cristã de altos e baixos. Um dia essas pessoas estão desesperadas, e outro dia estão em vitória. Era uma vida inconstante, mas quando eles voltaram o rosto para o Senhor, descobriam que Ele estava esperando. O Senhor não desistiu, mas estava sempre pronto para continuar. Penso que essa é a primeira grande lição deste Livro dos Juízes.

A Perda da Visão Celestial

Mas qual foi o efeito dessa parada? A perda da visão. Eles só viam as coisas que estavam próximas, perdendo de vista o propósito eterno de Deus. Eles perderam de vista aquilo que Paulo chama de "prêmio da soberana vocação“ (Fp 3:14). Isso pode parecer uma contradição, mas eles perderam de vista as coisas que não se veem! Podemos dizer: 'O que você quer dizer com isso? Isso é absurdo! Como podemos ver as coisas que não se veem?’ Paulo disse: "As coisas que são vistas são temporais, mas as que não são vistas são eternas" (2Co 4:18). Eles perderam de vista as coisas eternas, porque estavam olhando demais para as coisas visíveis. Perderam a visão celestial, por ficarem satisfeitos cedo demais. Tudo estava bom até ali, mas o bom tornou-se o inimigo do melhor.

A primeira coisa que aconteceu, então, foi a perda da visão celestial. Isso funciona nos dois sentidos. Se perdermos a visão celestial, nos estabeleceremos cedo demais. Se nos estabelecermos cedo demais, perderemos a visão celestial. E o que representa esse estabelecimento precoce? Que com isso perderemos o espírito de combate. Neste Livro de Juízes, os filisteus recorreram a uma estratégia muito sutil: tiraram todas as armas de guerra de Israel, e todos os fazendeiros de Israel tinham que fazer uma viagem ao ferreiro para afiar seus instrumentos agrícolas. Todos os instrumentos afiados foram retirados deles e o espírito de combate foi minado.

Os filisteus haviam impossibilitado Israel para o combate, e sabemos muito bem como esses filisteus são fortes! A estratégia deste grande inimigo da nossa herança é tirar de nós o espírito de combate. Oh, quanto dano os filisteus trouxeram aos cristãos! O que aconteceu com o tempo em que éramos poderosos guerreiros de oração, e combatíamos as batalhas do Senhor? E nossas reuniões de oração? Onde podemos encontrar essas reuniões, nesse momento, que perseveram em combate espiritual? Sim, pedimos ao Senhor dezenas de coisas, mas não lutamos até chegar à vitória em alguma situação. Vemos alguma vida em terrível escravidão, servos do Senhor em dificuldades e muitos outros apelos à batalha, mas onde estão os grupos de oração que abordam essas questões, e não desistem até que sejam resolvidas? O espírito de combate deixou grande parte da Igreja. Essa é uma estratégia inteligente do diabo! Perca o espírito de combate espiritual e irá abandonar a obra.

O Espírito do Mundo

A próxima coisa que fez com que essas pessoas se estabelecessem muito cedo foi o fato do espírito do mundo encontrar lugar nelas. Qual é o espírito do mundo? É o espírito que apela: Divirta-se! Vamos nos divertir! Vamos comer e beber, pois amanhã morreremos! E acredito que o povo de Israel olhou para o mundo ao seu redor e, pensou: 'Essas pessoas não passam pelas mesmas dificuldades que nós passamos. Nossa vida é uma vida de constante combate. Eles não sabem o que é isso, mas aproveitam a vida'. Acredito que isso pode ter se passado naquela ocasião.

É claro que, até esse momento, Israel tinha tirado a paz daquele povo! Mas Israel perdeu o espírito de combate, e o mundo estava se divertindo, porque a Igreja não estava mais lutando contra ele. Em vez de lutar contra ele, a Igreja fez amizade com o mundo, tornando-no em um amigo e, portanto, não terminaram seu trabalho. Fazer concessões é uma coisa perigosa para a nossa herança! Tentar manter boas relações com o mundo, e desfrutar de um tempo agradável, resultará na perda de grande parte da herança.

Recuperando o Espírito de Combate

Mas vamos concluir com uma nota positiva. Como já disse, Deus não desistiu, e sempre que as pessoas retomavam ao combate, se voltando para o lado do Senhor contra o inimigo, Ele estava ali esperando por elas. Então, temos a história de Débora, a história de Gideão - e ouso mencionar Sansão? Embora Sansão seja um pobre exemplo, se o Senhor apenas tiver uma chance, Ele a tomará. Podemos não ter Sansão em um alto conceito - mas será que temos um conceito mais elevado a respeito de nós mesmos? Somos todas pobres criaturas! Todos ficamos desanimados, somos tentados a desistir, paramos cedo demais, nos cansamos ​​de fazer o bem, mas tome a espada do Espírito novamente! Retorne para a batalha e verá que o Senhor está pronto e esperando por você.

Vemos Gideão, Débora, Sansão, e tantos outros juízes. Mas acho que há algo ainda melhor diante de nós. Vamos nos lembrar daquele lindo e pequeno livro de Rute. Todos se encantam com esse livro! Que bela história de restauração espiritual! Que quadro revelador da paciência do Senhor, de Sua prontidão para tirar proveito de todas as oportunidades! Como esse livro começa? "Nos dias em que julgavam os juízes..." [Rt 1:1]. A história do Livro de Rute ocorreu na época dos juízes, que até então, foi o momento mais terrível da história de Israel. Mas percebemos que Deus estava pronto para mudar todo aquele cenário. Então, temos duas imagens diferentes diante de nós: os Juízes e Rute, ambas relacionadas ao mesmo período. Percebe o que estou tentando dizer?

Queridos amigos, estamos vivenciando uma grande e longa batalha. Podemos ficar muito cansados ​​na luta, ficar desanimados e desistir cedo demais, parando antes que o trabalho seja concluído. Essa é sempre a nossa tentação, a possibilidade trágica na vida cristã, mas o Senhor não desiste. Ele não desmaia, nem fica desanimado, e se nos voltarmos para Ele, nos levantarmos novamente, recuperando nosso espírito de luta, continuando o bom combate, e descobriremos que o Senhor está sempre pronto e desejoso de nos ajudar a perseverar até o fim desse longo dia.


Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.