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Os Caminhos de Deus

por T. Austin-Sparks

Capítulo 5 - O caminho do Verdadeiro Discipulado

Leitura: Mat. 4:18-22; Mar 1:16-20; Luc 5:1-11 Marcos 6:13, Lucas 10:34).

Vemos nessas passagens da Escritura o início do discipulado, no que diz respeito ao Senhor. A primeira vez que a palavra é usada e a menção é feita, de que o Senhor tinha discípulos, foi em Caná da Galileia, após a transformação da água em vinho. A partir de então, em diferentes lugares do país e em diferentes momentos, a palavra "discípulo" é aplicada a eles, e vemos nessas passagens tal chamado, e, portanto, o início do discipulado. "Discípulos" simplesmente significa "aprendizes", aqueles que precisam aprender, e isto por associação ao professor.

Agora, nos registros do chamado dos discípulos, ou em sua relação com o Senhor, parece haver uma lacuna em certo ponto. Simão, André e João seguiram após o Senhor, pois estavam completamente cativados por Ele, e fica bem claro que, embora fossem discípulos de João, o Batista, porém, em dado momento, transferiram o seu discipulado para o Senhor. A lacuna se deu entre a chamada inicial e o ponto em que eles fizeram a ruptura final.  Durante esse intervalo, eles voltaram a pescar, como lemos em Lucas.

Está muito claro que Simão conheceu o Senhor antes deste incidente e que teve um tipo de relacionamento com Ele, o que sugere certo grau ou certo tipo de obediência. Havia um entendimento entre eles; havia um relacionamento já existente, porém, eles ainda não haviam deixado de vez os seus barcos e as suas redes e o seu trabalho como pescadores. Em certo sentido, até certo ponto, eles já eram discípulos. Eles já tinham ido muito longe; havia um entendimento entre eles e o Senhor. Havia um relacionamento, mas tal relacionamento ainda não havia chegado ao ponto em que tudo mais teria que ser abandonado por causa do Senhor. Isso aconteceu, como veremos adiante, por certos motivos.

O ponto para o momento é esta lacuna, durante a qual ocorreu esse incidente que acabamos de ler em Lucas, conhecido como a "pesca miraculosa". Esse evento ocorreu entre um relacionamento inicial e uma compreensão desenvolvida até aqui e a ruptura plena e o abandono total de todas as coisas por causa do Senhor e é por isso que tal incidente tem um significado peculiar, por ter ocorrido nesse intervalo de tempo. Você vê, de certa forma eles são discípulos, mas este discipulado não podia permanecer nesse terreno e nessa base de forma indefinida. Eles foram chamados para aprender, a fim de que pudessem fazer a obra. "Ele designou os doze, para que estivessem com Ele, e para que Ele pudesse enviá-los" (Marcos 3:14)."Para que estivessem com Ele" - esse é o discipulado; "e para que Ele pudesse enviá-los" - este é o apostolado. Podem ser duas coisas diferentes, ou duas metades de uma mesma coisa, e no meio, em algum ponto, de alguma maneira, entre o discipulado e o apostolado (isto é, entre o relacionamento com o Senhor para a instrução, para a disciplina, e o serviço efetivo) certas coisas devem acontecer. Não é sempre uma questão de tempo, absolutamente; é simplesmente uma questão de quão rápido nós conseguimos aprender. As duas coisas podem estar acontecendo mais ou menos ao mesmo tempo - ou seja, podemos ser discípulos e apóstolos ao mesmo tempo, pois esses homens eram essas duas coisas, até certo ponto. Mas algo deve vir e nos tirar do ponto em que somos, de maneira indefinida, apenas discípulos do Senhor, para o caminho pleno, que leva à realização do propósito completo para o qual fomos chamamos pelo Senhor, o objetivo para o qual Ele nos chamou para a comunhão com Ele mesmo.

O Valor de uma Base de Cunho Prático

Há duas coisas a dizer sobre isso. Uma é, em primeiro lugar, a grande importância e valor de uma base de cunho prático. Esses homens eram pescadores treinados. Parece que era uma espécie de companhia de responsabilidade limitada, e Simão era o sócio-gerente. As duas famílias são mencionadas como trabalhando juntas; eram parceiras de Simão. Quanto do treinamento e da formação natural desses homens são aproveitados em suas vidas. É muito impressionante, se você apenas ler o Evangelho de Marcos, ver quantas vezes o mar, o peixe e a pesca são mencionados. "Ele caminhou sobre o mar" é constantemente repetido em Marcos. Esses homens tinham esse fundo prático e temporal que teria um tremendo valor, e o próprio Senhor aproveitou isso. Eles conheciam a respeito do mar e daquilo que você pode esperar dele; conheciam sobre peixe e sobre aquilo que você pode esperar, quando o assunto é peixe; sabiam como apanhá-los; conheciam sobre redes. Tudo isso iria colocá-los numa ótima posição no outro terreno, onde o mar passa a ser o mundo e os peixes, as multidões de homens; mar e peixes juntos - toda a massa da humanidade, e os caminhos de Deus para pescar homens vivos. É interessante seguir Pedro do Pentecostes em diante, e ver essa elevada sabedoria espiritual em operação em sua vida, em relação aos homens. Da mesma forma, podemos olhar para a igreja e ver o Espírito Santo apoderando-se de homens.

O que penso é o seguinte, tal treinamento e tais valores adquiridos aqui neste mundo de forma temporal não são desperdiçados. Há uma soberania por trás da maneira com que o Senhor lida conosco em nossas vidas. Em alguns casos, pode haver um treinamento completo ao longo de uma determinada linha. Em outros casos, a maneira de a soberania do Senhor lidar conosco pode ser diferente. Algumas pessoas Ele conduz de uma maneira, outras, Ele o faz de maneira diferente. Por alguma razão, algumas pessoas foram conduzidas (talvez elas nem soubessem porquê) para assumirem esta ou aquela linha de trabalho, e elas se tornaram eficientes ou treinadas nisso. Outras pessoas descobriram que suas experiências eram diferentes da sua tarefa atual, porém, quando olharam sob a ótica do Senhor, descobriram que a maneira como Ele tratou com elas não foi sem sentido ou sem valor. Algumas pessoas, naturalmente, diriam: "Ah se eu tivesse sido treinado nisto ou naquilo! Se apenas tivesse tal coisa em minhas mãos!" Bem, pode chegar o tempo, se é que ainda não chegou, em que mesmo essas pessoas irão dizer: "Bem, isto me forneceu uma base concreta para conhecer o Senhor e as pessoas, e também para poder entrar na vida delas, não foi um erro ou um infortúnio". Às vezes pode ser algo bastante definido e concreto, como se deu com esses discípulos, os quais eram especialistas em seu comércio. Não sei o que Mateus pode ter pensado a respeito disso. Na condição de empregado de uma nação invasora que ocupava Israel, ele era obrigado a se sentar à mesa e receber os impostos. Talvez ele tenha refletido bastante sobre isso e feito muitos questionamentos. A soberania do Senhor tem um lugar para as nossas experiências, e não devemos tomar a atitude de descartá-las, por acharmos que não servem para nada. Elas encontrarão um lugar em nossas vidas, exatamente como aconteceu a esses homens. Nossas experiências certamente encontrarão um lugar se tão somente confiarmos no Senhor e não riscarmos a lista toda do passado, como se não houvesse qualquer soberania de Deus naquilo tudo. Isto é uma coisa muito importante de se lembrar e, se você é capaz de reconhecer isso agora ou não, chegará o tempo em que você não mais se lamentará por sua vida anterior ter sido do jeito que foi. Você verá a coisa sob a mão do Senhor, e entenderá que realmente foi um terreno no qual Ele pôde trabalhar, e do qual Ele foi capaz de obter valores peculiares. Isso é algo que vemos aqui. O Senhor tomou esses homens e transferiu a história passada deles para um terreno mais elevado, usando-a ali - com uma sabedoria mais elevada, e uma compreensão inteiramente nova das coisas.

Capitulação ao Senhorio de Cristo

Outra coisa bastante clara aqui é essa crise na vida de Pedro. Se ele é sócio-gerente, se é o chefe da empresa, é claro que ele é um representante. Ele é, à luz da grande posição que vai ocupar no futuro, líder na igreja no início. Foi através dele, após a recuperação, que os irmãos dispersos foram relacionados e reunidos. Foi pela liderança dada a ele pelo Espírito Santo que os primeiros grandes movimentos da igreja foram feitos. Não podemos afastar-nos do fato de que, em certo sentido espiritual, depois ele ainda continuou sendo sócio-gerente, por assim dizer; ele ainda é o homem que influencia a situação e as outras pessoas; ele ocupou uma posição de destaque na igreja. Quando foi colocado na prisão, toda a igreja fez oração por ele; ele foi o centro daquela situação. Bem, à luz da influência que ele iria exercer, da posição que iria ocupar, ele tinha que ser tratado de forma representativa.

Agora, pense no sócio-gerente, chefe da empresa de pescadores, tendo trabalhado a noite toda e não apanhado peixe algum, recebendo uma ordem em plena luz do dia de alguém que não era pescador, que ainda não havia sido reconhecido como o Filho de Deus, mas apenas como um profeta, o Messias (um carpinteiro mais acostumado com a agricultura do que com assuntos marítimos, que, naturalmente, não tinha conhecimento algum e nem autoridade na área em que Pedro era especialista) para lançar as redes. Agora, aqui temos algo muito interessante. Pedro tem suas reservas - "Nós trabalhamos a noite toda, e não pegamos nada, mas, sob Tua palavra lançarei as redes". Ele utilizou a palavra "Mestre". Esta é uma palavra peculiar, não é a palavra usual para professor ou rabino. É uma palavra muito rara, que significa Superintendente, e é muito significativo que Pedro pudesse ter chegado tão longe e dito: "Bem, eu sou o chefe desta empresa, mas Tu és o meu chefe. Eu cedo espaço a ti porque o reconheço como chefe de todo este negócio!" Porém, quando recolheu as redes com toda aquela quantidade de peixes, disse: "Afasta-te de mim, ó Senhor, porque sou um homem pecador". A palavra aqui é 'Kurios', que significa senhor absoluto. É o senhor Jesus Cristo. Este é outro domínio, não mais no campo temporal, mas no universal; é a transição da superintendência para um senhorio absoluto. Agora, essa transição indica o movimento do discipulado para o apostolado. "Serás pescador de homens". Assim, o Senhor dominou toda aquela situação, a fim de trazer Pedro, aquele que sabia tudo sobre pesca e achava que podia fazer tudo, para um lugar onde ele descobriu a sua própria incapacidade. Pedro, em sua absoluta incapacidade, descobre que o Senhor simplesmente pode fazer aquilo que nenhum especialista jamais imaginaria ser possível. Você não sai pescando em plena luz do dia, especialmente naquelas partes do mundo. Se você trabalhou durante a noite toda e não apanhou nada, simplesmente conclui que não existe nada, daí você limpa a sua rede e a põe para secar e, quando as coisas estiverem mais favoráveis, então você faz nova tentativa. Porém, na situação mais desfavorável e sem esperança, aqui está o tremendo reverso do céu.

O fato é - e precisamos reconhecer isto - que, mais cedo ou mais tarde, todos os que serão usados ​​por Deus, sob a soberania Divina, terão de reconhecer plenamente a sua própria incapacidade. Obviamente que na hora desse reconhecimento o inimigo irá atacar. Quando nos sentimos sem valor e desamparados, ele dirá: "Você não é bom, seria melhor você abandonar tudo e desistir!" Porém, reconheçamos que tais tempos de manifestada inutilidade, quando sentimos e sabemos que somos um fracasso, que tais tempos são absolutamente necessários para termos uma maior utilidade ao Senhor. O Senhor não terá quaisquer especialistas naturais em Seu serviço. Não há especialistas naturais no serviço de Deus; não haverá pessoas que pensam saber como fazer as coisas, que se achem capazes. O Senhor não tem lugar para tais pessoas, ou para qualquer um que pensa poder fazer alguma coisa. Simão é um representante; ele é o destaque de todo o discipulado, no entanto, diz: "Afasta-te de mim, pois sou homem pecador, ó Senhor". Quão absolutamente inútil! Obviamente que o Senhor não se afastou dele, mas continuou com o trabalho de treinamento.

O fundamento de todo treinamento, de todo discipulado é exatamente este. É você chegar a descobrir que não importa o quanto você acha que pode fazer, você simplesmente não pode. Não importa o treinamento que você teve; você não pode fazer a obra de Deus. Não importa como tenha sido o seu passado. Você pode ter sido o chefe de uma empresa importante - porém, isso não conta aqui. Você simplesmente entrou em outro domínio onde as coisas são totalmente diferentes. Você não pode escapar disso aqui; é o Senhor que domina neste reino. É um reino superior, maior, o qual deve produzir algo em nós.

Está dito, "ele ficou espantado", e assim os demais. Quem é orgulhoso jamais fica espantado. Quem pensa poder fazer e saber tudo jamais fica espantado. Agora, se você se depara com uma situação impossível, onde você se sente totalmente impotente, e vê o Senhor fazer algo, então, certamente você ficará espantado. Você não conseguirá fazer outra coisa a não ser colocar-se de joelhos e adorar.

Esse é o lado duplo do discipulado e do treinamento - e vamos colocar isto em nosso coração. Quando Moisés pensou que podia dar conta do recado, ele saiu e tomou a coisa em sua mão e começou a empregar a sua força, aí cessou a sua utilidade para o Senhor, e isso por quarenta anos. Quando chegou ao ponto onde teve que dizer: "Eu não posso - embora poderoso em palavras e instruído em toda a sabedoria dos egípcios - ainda assim, não posso!" - essa foi a hora que o Senhor começou e lhe deu a ilustração da sarça que ardia e não se consumia. Há algo sobrenatural nisso, em relação ao serviço de Deus. Este é o caminho do nosso chamado: ser constantemente lembrado de que nós não podemos fazer, mas, por outro lado, o Senhor pode, e o Senhor está fazendo. Então, enquanto não tivermos fé em nós mesmos, teremos fé no Senhor. Este é o caminho do verdadeiro discipulado.

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