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Sofrimento e Glória

por T. Austin-Sparks

Primeiramente publicado na revista "A Witness and A Testimony", em Nov-Dez 1949, Vol. 27-6. Origem: "Suffering and Glory". (Traduzido por Marcos Betancort Bolanos)

Leitura: Hebreus 11:32-40, 2 Coríntios 11:23-33; Colossenses 1:24; 2 Timóteo 2-3

Encontramos uma combinação extraordinária de sofrimento e alegria entre o povo de Deus em seus primeiros dias de existência. As condições em Jerusalém eram, sem dúvida, muito perigosas naquela ocasião, e é muito difícil nos imaginarmos naquela atmosfera. A crucificação do Senhor Jesus não tinha, de maneira alguma, satisfeito o desejo dos Seus inimigos. Por meio da história de Saulo, relatada um pouco depois, sabemos que aqueles que eram considerados “DO CAMINHO” tornaram-se objeto desse desejo de sangue, e havia uma forte e violenta hostilidade nos corações dos inimigos de Cristo contra eles. Seus seguidores precisavam se encontrar, às vezes, em lugares fechados e trancados. Entretanto, descobrimos que a palavra “louvor” abundava no meio deles. “Alegria e singeleza de coração, louvando a Deus” (At 2:46-47) é a frase. Sim, mesmo quando eram arrastados diante de magistrados, ameaçados e era-lhes dito muito claramente quais seriam as consequências se persistissem naquele caminho, eles se regozijavam dizendo “terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At 5:41). Tudo uma grande mistura de alegria com sofrimento.

A noite na qual o Senhor foi traído foi solene e pesada, houve profundas sombras naquele cenáculo; contudo ali estava Aquele que pôde tomar o cálice, sabendo tudo o que ele significava, deu graças, e, como última coisa antes deles saírem, sugeriu que cantassem um hino. Essa é a tônica do Novo Testamento, como percebemos nas maravilhosas passagens que acabamos de ler. Vemos Paulo narrando seus sofrimentos, apesar deles terem sido pouco detalhados e registrados, aquela foi uma longa lista de intensos sofrimentos. Em sua narrativa, no entanto, fica claro que ele se gloriava, se regozijava neles. O undécimo capítulo de Hebreus também não conclui com uma lamentação, mas com triunfo. À medida que lemos versículo por versículo, vemos força, triunfo, ascendência, nada pesaroso registrado ali.

O que isso tudo nos diz? Tudo se resume na Mesa do Senhor. Aos Seus discípulos Ele disse: “Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber?” (Mt 20:22-23); e esse cálice para eles representou o cálice da paixão, do sofrimento. Isso representava cumprir o que restava das aflições de Cristo a favor do seu corpo (Cl 1:24); e isso era sofrimento. Eles beberam o cálice mesmo até a morte.

Mas tome qualquer um desses homens. Se houve um homem em todo aquele círculo que nunca mais deveria ter cantado, se regozijado, ter andado com a cabeça erguida novamente, permanecendo cabisbaixo e melancólico, deixando sempre claro para as pessoas que confusão ele fez, essa pessoa seria Pedro. Mas ouça Pedro: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Pe 1:3). (A palavra “bendito” significa “louvado”). “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia (Pedro sabia do que estava falando) nos regenerou (para o mais terrível desespero? Não!) para uma vívida esperança” (não “uma viva esperança”; a palavra é muito mais enfática do que isso. Você pode estar vivendo sem estar vívido) [vívido é sinônimo de vivacidade, animação, ardor] - “para uma vívida esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”. Existe algo de tremenda esperança e otimismo nisso. E foi exatamente isso que aconteceu com os demais Apóstolos.

Aceitando a Comunhão dos seus Sofrimentos

Primeiramente devemos ter em mente, e para isso devemos buscar ajuda de Deus, que iremos ter uma trajetória de sofrimento se estivermos em comunhão com o Senhor Jesus. Isso é um ponto. Talvez por não termos avaliado isso logo de inicio, temos passado por esses prolongados períodos derrotados e privados de alegria. Devemos chegar a um ponto quando sentamos e avaliamos, chegando a uma conclusão definitiva sobre esse assunto. Mesmo que muitas vezes não sejamos capazes de ver que nosso sofrimento é devido ao nosso relacionamento com o Senhor (os sofrimentos são bem múltiplos e diversos, e muitas vezes parecem não ter nenhuma relação com nossa vida cristã), ao mesmo tempo, independente de discernirmos isso claramente; o fato é que a trajetória do filho de Deus, do companheiro de Jesus Cristo, é um caminho de sofrimento. Digo que quanto mais nós adiarmos ou nos demorarmos em deixar isso estabelecido em nossa mente, mais tempo seremos mantidos nesse estado de expectativa de que tudo será diferente, e como isso não acontecerá, ficaremos abatidos e sentindo que tudo está errado, que o Senhor está contra nós e todo esse tipo de coisa. Então daremos ao inimigo o terreno que tanto deseja para destruir nosso testemunho. A primeira coisa que devemos lembrar ao tomarmos este cálice é que, enquanto o tomamos como o cálice da salvação, e estamos nos lembrando da expiação que está no Sangue com toda a maravilhosa redenção que ele representa, o cálice também nos fala da comunhão com Seus sofrimentos. É o Seu cálice, é cumprir o que resta – o remanescente – das aflições de Cristo por Seu Corpo, que é a Igreja. Não somos capazes de ver os valores disso em nós mesmos – ficamos demasiadamente ocupados com o preço, o sofrimento e a provação – mas olhando mais à frente poderemos ver o admirável crescimento espiritual, a maravilhosa purificação de espírito, o embelezamento da vida. Sim, algo está subindo para Seu louvor e glória, enquanto Cristo está sendo formado por meio das chamas de adversidade e sofrimento. É a comunhão com Ele nos Seus sofrimentos, afinal, que estará produzindo mais semelhança com Ele. Portanto a primeira coisa que devemos fazer é contar com isto e ter isso bem estabelecido em nossas mentes.

Qual a nossa expectativa, o que estamos esperando, o que nos preocupa, pelo que suplicamos e oramos? Se você está orando por libertação total e final da adversidade, sofrimento e dificuldade, deixe-me dizer que sua oração nunca será respondida. As formas de sofrimento podem variar, mas de uma forma ou de outra estaremos avançando até o fim nesse caminho de adversidades. Satanás não se tornará nosso amigo enquanto formos amigos de Jesus Cristo. O reino de Satanás não irá se mobilizar para nossa ajuda, enquanto pertencermos ao reino que é oposto ao dele. Vamos compreender isso, pois vai nos livrar, possivelmente, deste emaranhamento.

Libertação Sem Libertação

O próximo ponto é que há libertação, mesmo quando não há libertação. Existe uma passagem da Escritura que, provavelmente, tem muitas vezes nos confundido. Parece ser algo que se reverte sobre si, parecendo não ser verdade. “Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (1Co 10:13). O que você acha disso: ‘livramento, de sorte que a possais suportar?’. Isso não é ficar livre, mas subjugar a dificuldade. Paulo clamou pelo espinho na sua carne, para que fosse removido, por três vezes ele buscou o Senhor a esse respeito, mas o Senhor respondeu: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza”. E a reação de Paulo foi: “De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo.... Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2Co 12:8-10). Paulo não foi liberto desse “mensageiro de Satanás”. Essa é a maneira clara de descrever sua provação. Podemos tomar isso para explicar nossas provações pessoais – essa pessoa difícil com quem temos que viver, ou seja o que for. Vamos direto ao ponto, dizendo: ‘isso é algo que o diabo quer usar para minha desgraça, para a ruína do meu testemunho, e o Senhor definitiva e deliberadamente o permitiu’. Paulo não foi liberto desse aguilhão em sua carne, desse mensageiro de Satanás que constantemente o esbofeteava, e ainda assim era livre! “De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas”, como o antigo guerreio do Velho Testamento disse: “Dá-me este monte” (Js 14:12); ‘não remova esta montanha, não a tire do caminho, dê-me a chance de dominá-la, subjugá-la, ganhar ascendência!’.

Mas o que estou dizendo não é fácil, não são meras palavras. Tudo é o resultado de muito exercício pessoal. Deus sabe como temos clamado e buscado libertações que não têm chegado. Perdoe-me por esta palavra pessoal para respaldar o que estou dizendo. Durante uma ou duas semanas atrás tenho orando bastante sobre esse espinho na carne, esse mensageiro de Satanás, e não vi o Senhor respondendo de maneira nenhuma. Durante esse tempo, tenho lido alguns livros. Estava lendo novamente sobre a vida de Wesley, de Whitfield, e a história dos “Covenanters” Escoceses [pactuantes]. Me encontrei lendo 2 Coríntios 11, e de repente juntei todo o quebra-cabeças. Os sofrimentos terríveis de John Wesley! Subindo e descendo o país, frequentemente prostrado com fraquezas físicas e sofrimentos; em cada povoado era perseguido, ridicularizado, apedrejado, ou até arrastado pelos cabelos, que situações esse homem passou! E seu irmão Charles participava disso tudo. É de corar de vergonha ler sobre os terríveis sofrimentos, martírios e torturas que os “Covenanters” [pactuantes] Escoceses passaram. Eles foram perseguidos, ficaram sem comida, casas, precisando viver nas encostas, em cavernas, em qualquer lugar. E aqui vemos a lista de Paulo. Será que devemos estar todo o tempo estipulando que nosso destino deve ser muito mais fácil? Eles triunfaram. Como os Wesley triunfaram! Nós cantamos: ‘Mil línguas eu quisera ter, para entoar louvor, à tua graça e ao teu poder, meu Rei e meu Senhor’. Você sabia que o sentido dessas palavras de Wesley não é exatamente o que imaginamos? Nós acreditamos que ele quis dizer: ‘Oh, mil línguas eu quisera ter!’ Ele e se seu irmão tinham permanecido num povoado para algumas reuniões. Apenas umas poucas pessoas compareceram e eles derramaram seus corações ao Senhor. Ao saírem eles viram uma grande aglomeração na rua vindo de um evento esportivo, e John Wesley disse ao seu irmão: ‘Desejaria Mil línguas para entoar louvor ao meu grande Redentor’. Equivale a dizer: ‘Oh, quisera que as mil vozes lá fora cantassem louvor ao meu grande Redentor!’. Esses foram seus sentimentos. Isso é triunfo!

A Mesa do Senhor é uma mistura de alegria e sofrimento, porém não creio que o Senhor irá fazer alguma mudança nas nossas circunstâncias até as tenhamos subjugado. Independente de Sua vontade específica na situação e nas condições que nos envolvem, a verdadeira libertação aguardará até que sejamos libertos da atitude interior de nosso espírito. Essa atitude tenta estipular que não continuaremos com o Senhor a menos que Ele nos conceda condições mais favoráveis. Tal espírito é uma negação da graça, uma negação de Sua suficiência. “A minha graça te basta... De boa vontade, pois...”. A saída é para cima, o caminho da vitória é ‘sobre’, não ‘de’. Portanto, antes mesmo de alguma coisa mudar, devemos encontrar a graça que resultará em plenitude de alegria. Às vezes, com Pedro, seremos “contristados por várias provações”; às vezes, com Paulo, seremos “abatidos”; mas se dermos uma chance à graça de Deus, encontraremos a antiga alegria de novamente! Dê-lhe uma chance! Está lá, não foi extinguida, não está morta. O ponto é, o que é o normal? Será que o normal é a miséria, a depressão, a melancolia? Ou será que isso nos marca somente por um tempo, às vezes? O normal não seria a alegria, a esperança, a otimismo? Algumas pessoas, temo, têm a ideia de que entregarão alguma coisa se sorrirem. Deve haver em nós, afinal de contas, algo borbulhando que não é de nós mesmos. É o Senhor.

Portanto, chegamos à Mesa do Senhor. Ao tomarmos o cálice devemos, por um lado, ter esse reconhecimento - “Sei o que isto significa, a comunhão dos Seus sofrimentos, tomar a minha parte das dificuldades com os apóstolos e os profetas, pela graça de Deus, tomo o cálice”. Mas também tem o outro lado – regozijando-me de ter sido julgado digno de padecer pelo Seu nome, e percebendo que através do Seu Sangue somos regenerados para uma viva esperança pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos.

Tenhamos graça para buscar ao Senhor com esta resolução. Por Sua graça não iremos nos render, mas triunfaremos, mesmo na hora da provação e sofrimento, pois dessa forma encontraremos nossa libertação. “Deus... proverá livramento, de sorte que a possais suportar”.


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