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A Maldição do Toque Terreno

por T. Austin-Sparks

Primeiramente publicado na revista "A Witness and A Testimony", em Jul-Ago 1962, Vol. 40-4. Origem: "The Curse of the Earth Touch". (Traduzido por Getulio Hand Vargas)

Em busca de uma frase que sirva como uma janela através da qual o que temos em mente possa ser visto, a que parece mais patente é

A Maldição do Toque Terreno

Entender o que essas palavras querem dizer é ter uma explanação sobre uma imensidão de fatos históricos, espirituais e temporais.

Precisamos começar por re-enfatizar o fato de que esta terra está sobre maldição. Isto é enfaticamente dito tanto Gênesis 3:18-19, como em Romanos 8:20-23.

A redenção efetuada por Cristo através da Sua Cruz é uma expectativa para a criação e é uma realidade espiritual para aqueles que estão “Em Cristo”. Tanto a "própria criação" quanto o "nosso corpo" aguardam "a manifestação dos filhos de Deus", a consumação da obra redentora. Somente os crentes são livrados da "maldição". Enquanto isso, a criação geme sob ela.

Esta terra será destruída e purgada pelo fogo (2 Pedro 3:7,10-13). Estas palavras, escritas há muitos séculos atrás, são agora muito mais facilmente entendidas por toda a humanidade do que eram quando foram escritas. O progresso rápido rumo a esta consumação, em um tempo menor que o da nossa própria vida, certamente clama “o dia do Senhor está próximo”. A maldição está presente; está ganhando rapidamente impulso, e poucas – se houver alguma – partes da terra estão escapando desta aproximação da fase final e clímax.

A natureza e características da maldição, como é revelado em todo lugar na Bíblia, são: frustração, entrave, perplexidade, descontentamento, abandono, confusão, angústia, avaria e uma luta sempre perdida contra o desespero e a morte.

Existem três esferas nas quais esses elementos podem ser claramente discernidos.

Primeiramente tais elementos são facilmente vistos pelo mundo. Chame como quiser; tente explicar como puder; a verdade é que o caos se aprofunda e se estende, de maneira que as mentes com maior formação, em conselhos nacionais e internacionais, não encontram solução para os problemas que os confrontam. É tão óbvio, que não precisamos gastar tempo e espaço para argumentar e provar isto. Não somos mais pessimistas do que a Bíblia é em relação à última fase da história do mundo, e nunca houve um tempo em que a descrição das coisas no fim poderia ser mais concordante do que agora – “Haverá homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo; pois os poderes dos céus serão abalados” (Lucas 21:26). Não precisamos escrever sobre este primeiro aspecto da situação. Estamos lendo sobre ele todos os dias nos nossos jornais e nos acontecimentos em todas as nações.

A segunda esfera é a da Cristandade em geral. Aqui novamente somos confrontados com uma situação que está levando os “Conselhos Mundiais” aos seus limites. Está longe de ser proveitoso reunir tudo o que tem sido dito e feito na esfera do “Cristianismo”, o qual claramente indica que está no pronto socorro em condição crítica, precisando de cada expediente, equipamento, medida, mecanismo e recurso para justificar sua existência. Alguns líderes “Cristãos” vão longe ao falar que esta é a “era pós-Cristã”. Isto tudo é muito horrível e terrível, mas a linguagem comum das “nossas tristes divisões”, “nossas divisões humanas”, etc., etc., e todo esforço febril de remendar as coisas através de concessões; o sacrifício daquilo que custou tanto, e assim por diante, só evidencia o fato de que as coisas não estão bem na Cristandade; longe disso!

Mas, para nós, o aspecto mais triste e mais lamentável desta situação pode ser encontrado nesta esfera, que pode ser chamada de “Evangélica”. Não é uma expressão forte dizer que chegamos a um tempo onde a atmosfera está saturada com um espírito de suspeita, medo, ceticismo, descrédito, desconfiança, incerteza, etc. Não há literalmente nada que escapa do chicote das críticas, o toque paralisante da reserva e questionamento. É surpreendente como rápida e facilmente as pessoas boas aceitam o que Paulo chama (como para si mesmo) “más notícias” as repetem e avisam aos outros interessados, sem mesmo investigar e “provar todas as coisas”. Um pregador famoso uma vez disse a um escritor sobre um certo líder Cristão que “as uvas de Escol se transformariam em passas em suas mãos”. Este espírito de desconfiança e crítica murcha as flores mais belas e seca o mais belo fruto produzido pelo Espírito. Muitos ministérios de Cristo têm sido arruinados por isso. E a mão do Senhor retém pão e riqueza por causa disto. Desta forma, uma característica do evangelicalismo do nosso tempo é a superficialidade. Há “uma fome de ouvir a Palavra”, e este é um julgamento sobre o espírito que trata a Palavra de forma barata, não a considerando como algo digno das mais ciumentas preocupações.

Mas temos que prosseguir para nossa conclusão, e em fazendo isso, temos que observar e fazer algumas perguntas.

Por que tantas coisas que grandemente serviram ao propósito de Deus eventualmente desmoronaram; se quebraram; tendo pouco mais do que um grande passado para se apoiar? Por que o próprio Senhor não contornou esta situação e preservou intacto esses instrumentos e vasos que Ele usou?

Por que divisão após divisão seguem quase sem parar o curso de muitas coisas que têm sido fruto de um zelo por uma posição absoluta de uma verdade Bíblica? Estas e muitas outras questões têm uma única resposta. Esta resposta é O TOQUE TERRENO.

Em algum lugar, de alguma forma, este contato contaminador foi feito. Houve um gesto em direção à terra. O homem colocou sua mão nas coisas celestiais e tentou trazê-las para a terra. Pode ter sido uma “Igreja Neotestamentária” de natureza composta: certas coisas ensinadas, implantadas e feitas em conformidade com os registros do Novo Testamento; uma certa ordem, técnica, e construção; essas coisas foram reunidas para um credo, uma forma de procedimento, e se tornaram a “base”, a forma e o padrão, a “constituição” de um corpo, uma instituição, uma sociedade; a mente do homem e a mão do homem definindo, controlando, segurando. O veredito da história é que Deus não se comprometerá com esse tipo de coisa.

Quando a Igreja veio a existir, foi “nascida do alto”, composta como tendo tido uma tremenda – poderíamos quase dizer, uma fantástica – crise, uma crise devastadora em relação à Cruz de Cristo. Quando as igrejas vieram a existir, em todos os casos, foi uma repetição local desta turbulência e revolução interna. As igrejas nunca foram feitas por homem ou homens, sejam eles os maiores Apóstolos. Os Apóstolos não levavam uma “planta arquitetônica” das igrejas do Novo Testamento onde quer que fossem. O resultado do trabalho deles foi uma crise, um culminar de uma velha criação e a ordenação de uma nova. O que se seguiu da ordem e do conhecimento foi algo orgânico, não organizado; espontâneo, não imposto; vida, não legalidade; e – acima de tudo – celestial, não terreno. Quando o homem puxou tais coisas para a terra, tudo começou a dar errado.

Por diversas vezes, Deus tem realizado novos moveres com algo celestial, mas invariavelmente tem havido um tremendo impacto do Céu sobre os que são primeiramente trazidos para dentro deles. Houve neles uma separação fundamental entre a terra e o céu, em que “todas as coisas eram novas”; uma ruptura interior que – para eles – divide dois mundos irreconciliáveis. Se mais tarde veio uma tragédia, isso pode ser visto como tendo acontecido por duas razões:

1. Aquelas primeiras pessoas violaram o próprio princípio de sua história, buscando cristalizar essa história em uma forma e estrutura para os outros. Eles apresentaram ou impuseram uma forma pré-estabelecida, ao invés de manter em plena vista o significado de “Cristo crucificado” e gemer dores de parto por uma crise nos outros.

2. Os outros vieram, mas em terreno falso ou inadequado. Eles sentiram a vida, viram algo bom (objetivamente), e quiseram os valores. Mas tudo foi sem o custo e sem crise: nenhum quebrantamento, nenhuma crise abaladora, nenhum Céu aberto, nenhuma dor de parto; somente as bênçãos, e – talvez – o lugar. Suas mentes naturais, tradições, ambições, ficaram intocadas; seus julgamentos naturais intactos. O toque terreno foi assim feito e o caráter das coisas mudou. Uma história de confusão, contradição e perda de medida, impacto e glória celestial começou lenta e quase imperceptivelmente, e apenas em uma crise posterior, esse processo pôde ser interrompido nas pessoas que tiveram uma transformação, pela qual a maldição foi quebrada.

Oh, esse toque terreno! Quão mortal ele é! Quando o povo do Senhor entenderá o significado essencial da sua união com Cristo no Céu?!

Nossa premissa é de que esta terra e tudo o que nela há está sob maldição e julgamento, mas aqueles “nascidos do alto” são fundamentalmente separados desta terra pela Cruz de Cristo, de forma espiritual. Mas, a maioria dos problemas no Cristianismo é devido ao envolvimento e contato espiritual com o reino da morte, onde a proibição Divina opera. Vamos ilustrar isso com exemplos muito vivos na Bíblia. Nossas ilustrações serão casos de servos ou pessoas de Deus, que nos levarão exatamente ao ponto que estamos tentando mostrar. Quando o povo de Deus toca a terra (de forma espiritual), os problemas começam.

Começaremos com Abraão. Não há dúvida quanto a sua separação fundamental. Também não há dúvida de que ele era um homem comprometido com Deus. Mas no ponto em que a fé foi duramente provada, tendo em vista aparentes impossibilidades – atuais impossibilidades naturalmente – ele recorreu a uma forma natural, tentou resolver a situação pelos meios naturais. Ele desceu de sua posição celestial “com Deus tudo é possível” e tocou a terra quando recorreu à Agar como a solução.

Não precisamos nos estender sobre as consequentes vergonha, arrependimento e tragédia, vindas não apenas à sua própria vida e a de Agar, mas também até aos dias de Ismael. Aquele toque terreno de fato manteve-se como um poderoso aviso para todos. É o toque terreno como uma alternativa à fé, quando o natural nada pode nos oferecer.

A partir daí, passamos para Jacó. Rebeca havia sido precisamente avisada sobre os dois filhos que estavam prestes a nascer “o mais velho servirá ao mais novo”. Em seu favoritismo óbvio para com Jacó, é improvável que ela não tenha dito nada sobre isso à ele. Mas, coniventes um com o outro, eles juntos buscaram assegurar o direito de primogenitura através de caminhos ardilosos, enganadores e mentirosos. Foi, sem dúvida, um toque terreno. Descendo para uma forma baixa e carnal de tentar efetuar o propósito de Deus. O resultado – vinte anos de desonra; enganando e sendo enganado; estendendo o caminho duvidoso de sucesso (?); política, não princípio. Sucesso não tem lei – o fim justifica os meios e todos esses argumentos ilusórios. Mas Jaboque e Peniel são o veredito e avaliação de Deus. Nem mesmo um escolhido na soberania Divina poderá sair impune de um toque terreno.

José ocupa uma posição muito elevada no veredito da história e nas nobres biografias bíblicas. Mas, sem dúvida, um aspecto definitivo para os longos anos de prisão – sendo esquecido, e “sua alma em grilhões” – foi a disciplina do toque terreno do orgulho, presunção e vaidade que o levou a contar seus sonhos aos seus irmãos. Sonhos que se tornam realidade, sim, mas quando a autovalorização pessoal se impõe nas intenções Divinas, tudo declina para a morte e incerteza.

Anos mais tarde, chegamos à Moisés. Aqui novamente estamos na presença da soberana intenção e propósito Divinos, tanto o objetivo como o instrumento: o objetivo – cumprir a promessa feita à Abraão, de trazer sua semente, como uma grande nação, para fora da escravidão à possessão da terra da aliança. O instrumento – um bebê milagrosamente preservado e um homem ricamente treinado. Mas na idade adulta – o toque terreno; colocando suas próprias mãos no propósito e trabalho de Deus, e pelo seu próprio zelo, força e prestígio, efetuando o que era para ser um dos maiores testemunhos da história para o poder e glória de Deus. O resultado – quarenta desoladores anos no deserto; um erudito, líder treinado, príncipe do Egito, pesaroso enquanto cuidava de algumas ovelhas. Seus pés tocaram a terra de uma forma mais do que física, e há mais do que um significado físico nas palavras do Senhor “Tire as sandálias dos teus pés”. Não há toque terreno com Deus.

Mais alguns anos e chegamos a Josué e Ai. Quanta história e soberania Divina, para não falar da paciência e fidelidade, estão por trás da eventual chegada do povo na Terra. Certamente todas as garantias e encorajamentos dados à Josué não permitiriam que nenhum erro ameaçasse toda a questão com um desastre! Mas assim foi! “Acã... tomou das coisas condenadas”, e o que se sucedeu foi uma inoportuna parada, desolando Josué e o povo. O toque terreno da ambição pessoal, cobiça e desejo por ganho pessoal.

Concluímos nosso exame, lembrando-nos dos resultados desastrosos da contagem de Israel feita por Davi. É possível até mesmo tomar uma das maiores bênçãos de Deus como base e ocasião para autossatisfação - apontar para aquilo que é apenas pela Sua graça, misericórdia e fidelidade, e extrair satisfação e felicitação para nossa própria alma. Custou a Davi a perda de milhares de seu povo, vergonha e remorso para si mesmo e uma mancha na sua história. Sim, Deus em Sua soberana graça nunca o lançou fora, mas, da disciplina de Davi, indicou o local do Templo.

Que história é esta do toque terreno! Nós, de maneira nenhuma esgotamos o assunto. Poderíamos adicionar muitos outros exemplos do Velho e do Novo Testamentos, mas o que falamos até agora é o suficiente para enfatizar a essencial vida, posição e governo celestiais do povo – e servos – do Senhor, e nos levar a ver se existe fermento na nossa casa. O Senhor nos ajude a permanecermos desembaraçados do reino e das coisas da morte. Como precisamos

“Habitar no esconderijo do Altíssimo” e então “Descansar à sombra do Onipotente”.

Certamente isto responde e dá significado às palavras do Senhor: “Permanecei em mim”.

Que Deus nos ajude.


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