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As Vozes dos Profetas

por T. Austin-Sparks

Capítulo 10 – A Voz de Ezequiel

"Eles não conheceram ... as vozes dos profetas que eram lidos todos os sábados" (Atos 13:27).

Gostaríamos de lembrar os nossos leitores de que essas mensagens são constituídas por um princípio que governa toda a Bíblia. É o princípio de que, por trás das palavras da Escritura, existe uma voz; e que era - e é - possível ouvir as palavras e perder a voz. As palavras são as declarações; a voz é o significado. Nós provamos ser este o caso através de uma declaração como aquela de Isaías 6:9: "Ouvis, de fato, contudo, não entendeis, e vedes, na verdade (margem: ‘continuamente’), mas não percebeis”. Esta é a condição que está por trás da nossa citação de Atos 13:27.

A “voz” de Ezequiel tem o seu próprio significado particular, o qual é muito rico e desafiador no contexto da religião, e, em especial, no Cristianismo, por aquilo que acabou se tornando.

Isaías é mencionado muitas vezes no Novo Testamento, o que não é o caso de Ezequiel, que não é citado por nome, mas há uma profusão de alusões a suas profecias. Na superfície de boa parte do Novo Testamento, seus simbolismos são óbvios, e, abaixo da superfície, seus princípios espirituais não são difíceis de serem encontrados. É este significado que constitui a tragédia de Israel e a fraqueza patética e também a ineficácia de muito daquilo que é chamado de Cristão. É a incapacidade de discernir.

A Diferença Essencial Entre o Literal e o Espiritual

Que grande quantidade de trabalho tem sido gasta ao se tentar explicar esse livro, e quanta explanação tem se mostrado fútil, e mesmo tola! Este profeta, mais do que qualquer outro, transmite a sua mensagem por meio de símbolos e parábolas, e, embora alguns deles possam ser facilmente interpretados através da história, há muita coisa que não pode ser interpretada literalmente, sob pena de entrarmos no campo da impossibilidade e do ridículo, se assim o fizermos. A única resposta a este último caso está nos princípios espirituais, e não em realizações literais. Vamos dar um exemplo resumido. Porém, aqui somos confrontados com uma necessidade imperativa, que é a de salientar outra distinção fundamental. Os literalistas têm recorrido a uma evasão de enigmas ao lançar fora a ‘espiritualização de certas coisas’. Ao fazer isso eles deixam muita coisa sem uma explicação satisfatória, e – pior – caem na decepção, a qual dá tanta falsidade a grande parte do ‘Cristianismo’. 

Por isso, é necessário, antes de podermos entender Ezequiel, darmos espaço a essa vital distinção que muito poucas pessoas são capazes de reconhecer. A distinção é a seguinte:

A Diferença Entre Misticismo e Espiritualidade

Quão terrível, e quanta perda nos traz esta falha! Entre essas duas coisas há toda uma diferença entre dois mundos, e, se esses contrastes fossem compreendidos, haveria muito cuidado no uso da palavra ‘místico’, em relação a tais coisas como ‘o Corpo de Cristo’, “Cristianismo’, ‘os elementos da ceia do Senhor’, etc. Talvez a principal distinção entre as duas coisas é que misticismo raramente – ou nunca – é algo prático (apesar da frase comum: ‘Prática Mística’), enquanto que ‘espiritualidade’ é totalmente prática. Vamos explicar isso.

O misticismo tem a ver com os sentidos da alma, e geralmente se refere a impressões emocionais e estéticas. É resultante de música, pinturas, cerimonial, ritual, vestimentas, paramentos, episódios dramáticos, vozes solenes, sons, entoações, iluminação (ou o contrário), e todas essas coisas. O efeito é transitório e está restrito à ocasião. Temos visto as explosões mais viciantes de ódios rivais acontecerem imediatamente após certas pessoas terem participado na celebração do Festival de Corpus Christi, com a elevação da hóstia. Este pode ser um exemplo bem extremo, mas serve para definir a natureza do misticismo, pois, durante a ‘Celebração’, ouvimos pessoas gemendo e balançando, como se estivessem sofrendo as agonias físicas de Cristo. Quer seja na forma extrema, ou mais suave, o misticismo nunca é algo prático, no sentido de mudança de caráter, pois coloca a pessoa num terreno falso, e os engana em relação a si mesmos. É uma ilusão, uma falsa espiritualidade, e é – tanta na sua melhor forma como em suas formas mais perversas – a ilusão de Satanás. A religião, como tal, pode ser puro misticismo, sem qualquer poder para transformar a vida; seja ‘Cristianismo’, Hinduismo, Budismo, ou qualquer outra. 

Por outro lado, o que a Bíblia (particularmente o Novo Testamento) quer dizer com espiritual é que ele é algo imensa e inevitavelmente prático. Basicamente significa uma mudança de natureza, como disse Cristo: “Aquele que nasceu do Espírito é espírito”, e, assim, "Necessário vos é nascer de novo” (João 3:5,7). Esta é uma declaração de fato. O clássico sobre essa diferença foi referido por Paulo em 1 Coríntios, capítulo 2. Aí encontramos, no primeiro caso, o contraste entre Nicodemos, o qual era intensamente religioso e mestre intelectual em Israel, e um homem nascido de novo. No segundo caso, o contraste do ‘natural’ (Grego ‘almático’), e aquele que é ‘espiritual’, e o ponto focal em ambos os casos é a compreensão. Espiritualidade, segundo a Bíblia, é algo essencialmente prático, tanto em relação a sua origem quanto ao progresso da verdadeira vida cristã. Não é nada menos do que uma diferença entre espécies. O Novo Testamento está fundado e construído sobre esta diferenciação e contraste. 

Aí, então, está a tragédia de Israel e de muitos dos chamados cristãos. É aqui, neste ponto focal, que o fracasso em ‘ouvir as vozes dos profetas’ é encontrado. Isto aqui é um prefácio essencial para se entender o simbolismo de Ezequiel, e, com esta introdução, prosseguimos.
A chave para tudo nas profecias de Ezequiel (todo livro) é a palavra característica. Do capítulo 1 ao 42 temos 24 referências ao “Espírito”. O Espírito é a energia, o guia, o revelador, a vida. O profeta atribui tudo ao Espírito. Nenhum livro no Velho Testamento dá tanto espaço ao Espírito. Embora a mesma palavra seja usada para vento ou respiração, é impossível – sem ser absurdo – usar tal palavra em todas as conexões. Somos compelidos a relacioná-la ao Espírito de Deus na conclusão do livro. Deus está tomando a iniciativa; Deus está manipulando o profeta; Deus está mostrando ao Seu servo; é Deus falando ao “Filho do homem” (outro termo característico). A conclusão inclusiva é que a grande questão para o povo era que eles foram confrontados com a obra e a fala do Espírito de Deus, no entanto, não enxergaram, nem ouviram.  O resultado foi que – como nação – eles se perderam no cativeiro e somente um remanescente foi salvo. Tendo muito mais a dizer, em relação à mensagem deste livro, porém, em termos de princípio, já alcançamos o seu clímax.

Temos diante de nós, na história, o pleno cumprimento das terríveis palavras que foram proferidas pelo Senhor Jesus. Podemos ver uma nação, desde os anos 70 A.D. até os nossos dias, nas “trevas exteriores, chorando, lamentando, rangendo dentes”. Isso, segundo Jesus, é a consequência do “pecado contra o Espírito Santo”, para o qual não há perdão. Porém, nós também estamos em Romanos: “Mas um remanescente será salvo”. O “Filho do Homem”, ungido e cheio do Espírito, veio primeiramente a Israel, falando e trabalhando “pelo dedo de Deus” (o Espírito Santo). Suas palavras e Suas obras foram desacreditadas e repudiadas, e Ele foi acusado de “ter demônio”. Eles “mataram o Príncipe da Vida”, exigindo a Ele uma forma de morte tão vergonhosa como nem mesmo Roma jamais aplicara antes a um romano. Este foi o pecado, e os séculos têm contado a história.

Para concluir esta introdução, qual é o ponto? Não é aquela questão particular levantada por Jesus em seu tempo entre os homens, e mais tarde às igrejas: "Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz”? Algumas vezes é surpreendente o que até mesmo cristãos – e líderes cristãos – podem fazer e dizer por causa desse ouvido surdo em relação Espírito. Eles podem assumir e passar os relatórios mais perniciosos, que são puras mentiras, as quais causam um dano incalculável às pessoas e também aos interesses do Senhor, porque eles não caminham no Espírito, para que possam ouvi-lo dizer dentro deles: ‘Isso não é verdade’. Uma coisa é incluir a crença como sendo um pilar da doutrina cristã, outra coisa bem diferente é saber quando “o Espírito da verdade” testemunha dentro do coração em relação à verdade ou falsidade. É muito significativo que tanto o remanescente como os vencedores sejam marcados por esta “ouvir a voz”. Jesus estabeleceu a questão final da vida ou da morte sobre este “ouvir a voz” (não apenas as palavras) do Filho do Homem’.

"Todos os sábados" eles ouviam as palavras, mas não a voz.

Ezequiel tem muito a nos dizer que exige um ouvido para o Espírito. Oremos por um ouvido como o de Samuel -

"Oh, dá-me o ouvido de Samuel -
Um ouvido aberto, Senhor! 
Vivo e ativo para ouvir 
cada sussurro de Tua Palavra!"

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