por T. Austin-Sparks
Capítulo 9 - O Significado e o Valor da Filiação
”Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho... " (Mateus 11:27).
"Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou... vi e tenho testificado que ele é o Filho de Deus." (João 1:18,34).
“O que não crê já está julgado, porque não crê no nome do unigênito Filho de Deus... O Pai ama o Filho... quem crê no Filho tem a vida eterna." (João 3:18,35-36).
"O Pai ama ao Filho... assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer." (João 5:20-21).
"Crês tu no Filho do Homem?" (João 9:35-37).
"Esta enfermidade não é para a morte, e sim para glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado.” (João 11:4).
"...Glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti." (João 17:1).
"...Para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos.” (Colossenses 2:2-3).
"Amados, agora, somos filhos de Deus..." (1 João 3:1-2).
"O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus... para a liberdade da glória dos filhos de Deus." (Romanos 8:16,21).
"...Para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis..." (Filipenses 2:15).
"...nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo..." (Efésios 1:5).
Continuando em nossas meditações sobre Cristo na glória como nossa suficiência, chegamos a um outro aspecto de Seus recursos relacionado à filiação.
Em primeiro lugar, observemos que há uma diferença entre os títulos de nosso Senhor Jesus Cristo: Filho do Homem e Filho de Deus. Eles abrangem dois aspectos da verdade e da obra.
Como Filho de Deus, o Senhor Jesus representa o aspecto da verdade do próprio Deus se manifestando em carne. Após a queda, Deus nunca mais confiou Sua obra ao homem. "Deus estava em Cristo" [2Co 5:19]. Cristo era Emanuel, Deus conosco [Mt 1:23]. O título Filho do Homem nos mostra outro aspecto de Cristo: Deus está restaurando para o homem e na forma humana aquilo que ele perdeu. Significa que Deus desceu à Terra como homem; Ele se identificou com o homem para redimi-lo. Mas esse título "Filho do Homem" vai muito além do nível humano comum. Nosso Senhor Jesus Cristo está muito acima de todos os outros homens em Sua natureza. Ele é o Filho do Homem do céu, ou, como dizem as Escrituras, "que está no céu" [Jo 3:13]. Isso não poderia ser dito de nenhum outro homem. Todos eles eram da Terra. Somente Cristo era do céu como "o Filho unigênito". É importante entender o significado disso.
O Senhor Jesus não foi propriamente o Filho unigênito. Essa expressão não tem nada a ver com gerar, pois as Escrituras nos dizem que todo crente é gerado por Deus. Não é isso que essa expressão significa. Essa expressão tem a ver com o tipo de nascimento. O Senhor Jesus foi gerado de forma única; Ele foi o único dessa espécie e permaneceu sozinho como tal. Todos nós fomos gerados pela Palavra de Cristo e pelo Espírito. Mas todos nós somos pecadores por natureza, porque “o que é nascido da carne é carne". Portanto, Paulo diz de nós que estamos "em Cristo" que "o corpo está morto por causa do pecado, mas o espírito está vivo por causa da justiça”. Em contraste com isso, a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo em carne foi algo único. Não havia pecado naquele que veio em semelhança de carne pecaminosa. O Filho de Deus nasceu de uma maneira única de uma vez por todas. Esse é o significado de "o Filho unigênito". Ele é o Filho do Homem vindo do céu. Esses dois títulos são divinos e pertencem ao céu. Como Filho do Homem e como Filho de Deus, Ele é diferente de todos os outros homens. Não devemos separar esses dois títulos.
Quanto à aplicação prática, muita coisa está ligada ao fato de que o Senhor Jesus era o Filho de Deus. Observe com que frequência o Senhor Jesus se refere à Sua filiação, o quanto dependia disso para Ele. Esse fato significava tudo para Ele. Se Ele não soubesse disso, estaria sem a força principal que caracterizou Sua vida. Ele viveu triunfantemente e trabalhou poderosa e eficazmente, porque sabia que estava naquele relacionamento essencial com Seu Pai.
Sejamos diligentes para que também nós derivemos nossa força do conhecimento vivo de que somos, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, filhos de Deus. O próprio fato de Ele ser o Filho de Deus Lhe conferia uma força maravilhosa que O tornava superior a todos os outros homens, tanto em posição quanto como pessoa. Era um tipo correto de superioridade, marcado pela mais profunda humildade. Ele podia verdadeiramente dizer a respeito de Si mesmo: "Sou manso e humilde de coração". No entanto, havia uma força e uma dignidade maravilhosas no Senhor. Desprezado pelos homens, sem nenhuma posição terrena, Ele podia erguer a cabeça como um rei. A consciência de que Ele possuía o que nenhum homem possuía era isenta de qualquer autoafirmação. Isso O salvou de um "complexo de inferioridade", que nunca é sinal de humildade. Ele sabia que tinha uma missão vinda do alto. Tinha o perfeito direito de se erguer entre os homens. Podia encarar a todos, pobres e ricos, porque sabia que Deus O havia enviado e os homens reconheceram essa força nEle. Eles estavam conscientes de uma dignidade e de um poder que O cercava, o que os compelia a dizer que Ele falava “como tendo autoridade e não como os escribas". Ele tinha perfeita confiança no que dizia e na maneira como o fazia. A explicação se encontra em quem Ele era. "Desci do céu." Foi a filiação que Lhe deu essa força — esse relacionamento maravilhoso que Ele tinha com Seu Pai.
Hoje, o valor espiritual dessa filiação divina é nosso. Isso não significa que devemos nos tornar orgulhosos ou presunçosos. Temos que ser como o Senhor foi, mansos entre os homens, humildes de coração e modestos. Não deve haver autoafirmação, mas devemos ter a força do Filho de Deus. Nunca devemos ter nada de apologético em nosso testemunho. Somos filhos de Deus. João diz: "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus." [1Jo 3:1] Essa é a afirmação de um fato. “Somos filhos de Deus." Firmemo-nos nesse fato. Que força teríamos se verdadeiramente reconhecêssemos a posição que temos como filhos diante de Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo! "O Pai ama o Filho.” Isso vale para todos os filhos de Deus. A filiação se baseia no amor especial do Pai. "O Pai conhece o Filho." Nós também somos conhecidos por Ele. O mundo não nos conhece. Pode nos considerar um lote muito pobre, mas também não O conhecia. Entretanto o Pai conhece e ama Seus filhos. Essa é a nossa força.
Notemos, então, que a filiação é fundamental para a ressurreição (Rm 1:4). Toda a criação aguarda a revelação dos filhos de Deus, pois foi criada para eles. Mas agora a criação está sujeita à vaidade e submetida a severas limitações. Pois, quando Adão (que era a coroa da criação de Deus) caiu, toda a criação caiu junto com ele e a filiação foi suspensa. Consequentemente, toda a criação sofre. Ela geme e sofre dores de parto até agora, aguardando a manifestação dos filhos de Deus. Mas, quando os filhos de Deus forem revelados, então a criação também será libertada da maldição do pecado e da morte, e trazida à glória. Assim, existem elevados privilégios vinculados à filiação. Toda a criação depende de nós. Todo o universo aguarda a manifestação dos filhos de Deus. Como poderíamos ignorar o tremendo significado e a vocação da nossa filiação? Seja o que for que sejamos entre os homens, existem tremendas possibilidades para o mundo ligadas a nós. É indizivelmente grandioso e não tem nada a ver com autoimportância. Deus quis que tudo neste universo dependesse de nós e da nossa filiação. Nascemos de Deus para sermos conformados à imagem do Filho de Deus. Crescendo nEle, nos é permitido entrar na elevada posição de uma vocação celestial, designada aos filhos de Deus.
A filiação é a base da atividade de Deus. A posição e a vocação da filiação nada têm a ver com uma nomeação "oficial". O relacionamento de Deus conosco não se dá em bases oficiais; não é porque assumimos alguma obra cristã, ou usamos um certo nome que representa um ofício especial, que Deus se interessa por nós. Ser ministros ou obreiros cristãos não implica que Deus esteja trabalhando especialmente por meio de nós. O relacionamento de Deus conosco se baseia em nosso relacionamento com Ele como Seus filhos. Ele está lidando conosco como filhos. Se trata de algo espiritual, não é um assunto oficial. O ministério, portanto, resulta de um relacionamento especial com Deus. A verdadeira obra de Deus depende de nosso relacionamento espiritual com Ele, e o valor do nosso serviço é proporcional à nossa união com Deus.
Somente aqueles que estão em unidade absoluta com Deus podem assumir responsabilidades por Ele. Independente de como nos denominarmos, e de quão grande for a nossa atividade para o Senhor, Deus não leva isso em conta. De nada adianta ir a Ele e dizer: "Agora, Senhor, Tu sabes que estou engajado nesta obra e, portanto, quero que me ajudes nisso". Isso não é motivo para que Ele nos ajude. Deus apoia Seus filhos e só trabalha com eles com base em um relacionamento interior. Alguém que não esteja ocupando uma posição "oficial" pode ser muito mais útil ao Senhor do que muitos que têm um ministério e uma posição oficiais. O que importa não é o nosso conhecimento espiritual ou ministério oficial, mas o nosso relacionamento secreto com Deus. Deus nos capacita espiritualmente para o Seu serviço e sustenta a nossa filiação, não o nosso ofício. Ele cuidará da nossa posição, se cuidarmos do nosso relacionamento com Ele.
Deus chamou Israel de Seu primogênito. Ele apoiou Seu povo com base nessa filiação. Portanto, Israel pôde assumir uma posição importante e significativa entre as nações. Israel era o vaso escolhido para o testemunho de Deus na terra. Mas chegou o dia em que deixou de continuar com Deus como Seu primogênito. Seu relacionamento interior com Deus tornou-se meramente uma forma exterior, e Deus precisou se retirar e enviar Seu povo ao cativeiro. Teria sido inútil Israel se voltar para o Senhor com esta queixa: "Por que estás nos tratando dessa maneira? Não somos Teus representantes entre as nações?" A resposta de Deus teria sido: "A posição oficial não significa nada para Mim. Não posso ajudá-los enquanto o relacionamento de vocês Comigo não for correto, enquanto vocês não estiverem naquilo que sua filiação significa e exige." Veja, nossa posição e vocação estão relacionadas à filiação. Por essa mesma razão, o Senhor Jesus enfatizou a filiação. Ele nunca disse que o Pai amava o ministério que Ele viera cumprir nesta terra. Mas Ele disse: "O Pai ama o Filho". Posição e vocação devem ser baseadas na filiação. Sem filiação, elas não têm valor diante de Deus.
Qual é o propósito da filiação? É nos levar a um lugar de responsabilidade espiritual. Deus nunca coloca responsabilidades sobre "pessoas oficiais", mas sobre filhos. Portanto, Ele precisa nos treinar como filhos para desenvolver a filiação em nós, para nos levar a um estado em que possamos assumir responsabilidades para com Deus. Ele busca nos levar a um estado de maturidade espiritual, ao pleno crescimento. Isso não pode ser feito em alguma escola bíblica, ou colocando pessoas "no ministério". Deus nunca opera em um nível oficial. Deus nos leva para a Sua escola. Ele também pode nos levar para a Sua escola em algum instituto de treinamento, e é uma bênção se Ele o fizer. Mas a escola de Deus é algo muito diferente da mera atividade acadêmica. Sua Palavra diz: "Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe." [Hb 12:5-6] Observe esta palavra "a quem recebe". O significado exato em grego não é "recebe", mas "a quem Ele posiciona" ou coloca. É uma questão de posição. Deus busca desenvolver em nós uma condição em que nos tornemos confiáveis. Quando Deus lida conosco, há por trás disso uma maravilhosa garantia de que Ele depositará Sua confiança em nós. Ele está nos colocando em uma posição de confiança. Não queremos ser apenas servos, peças de uma máquina, mas filhos que se tornaram um com o Pai, e em cujas mãos Ele pode colocar responsabilidades espirituais. Quando verdadeiramente reconhecemos isso, começamos a entender por que Deus está lidando conosco da maneira que Ele faz. Mas, porque Deus está nisso, sabemos que o fim é certo. Ele conduzirá Seus filhos até o fim.
O fato de Sua filiação deu ao Senhor Jesus perfeita certeza quanto ao resultado final e à realização de Sua vida. Isso O levou longe, embora Ele soubesse que a cruz estava imediatamente à sua frente e que Ele seria morto. Ele ministrou aqui por três anos e meio, e então Sua vida terrena chegou ao fim. Como Ele encarou isso? Ele considerou isso como algo que viria e passaria, mas isso não fez diferença para Ele e Seu relacionamento com o Pai. Seus sofrimentos foram apenas um túnel que Ele atravessaria e então sairia para a luz e prosseguir por toda a eternidade, porque Ele era o Filho de Deus. A morte foi um mero incidente para Ele, pois Sua filiação era indestrutível, eterna. Ele sabia que Sua obra não terminaria na cruz, mas continuaria, com base na ressurreição, por toda a eternidade. Ele não estava vivendo apenas por este pequeno espaço de tempo. Assim, Ele derivava Sua força do fato da filiação.
Estamos dizendo que este é o fim de tudo? Consideramos as provações desta vida terrena como algo incidental, passageiro e que não faz diferença para nós e para o nosso estado interior? Devemos estar cientes de que, se passarmos pela sepultura (se o Senhor tardar), será apenas uma passagem para a expansão. Teremos um serviço e um futuro glorioso nas eras vindouras. "Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face." [Ap 22:3]. Este conhecimento da filiação conduziu o Senhor Jesus através da escuridão da cruz em triunfo. Sua última palavra foi "Pai". Teria sido diferente se a cruz tivesse sido o fim de tudo. Seus discípulos pensaram que tudo havia chegado ao fim. Mas, mais tarde, entenderam que significava algo mais do que isso. Era o início de algo novo – a filiação estava em vista. No caso do Senhor Jesus, essa posição de filiação Lhe trouxe uma poderosa segurança quanto ao resultado das coisas. Por trás disso estava a força de uma vida eterna que vence a morte.
Essa certeza também se aplica a nós. Se olharmos para o nosso Senhor Jesus na glória, tnossas perguntas serão resolvidas. O que Deus busca é a consumação da filiação. A filiação é a base sobre a qual o Pai concede toda a Sua plenitude e que torna todas as coisas possíveis para nós. “Porque o Pai ama o Filho, e lhe mostra tudo o que faz” [Jo 5:20]. O Senhor Jesus sabia que "o Pai havia confiado todas as coisas em suas mãos, e que Ele veio de Deus". [Jo 3:35; 16:42]
Veja novamente a carta aos Hebreus, onde nos é dito que toda a herança é dada em relação à filiação. A plenitude do Pai está incluída na filiação. Pode ser que não tenhamos muito aqui na Terra. Certamente o Senhor Jesus não possuiu muitos bens terrenos, mas pôde dizer: "Na casa de meu Pai há muitas moradas”. E que lugar de plenitude é a casa do Pai! Ele sabia que era herdeiro de todas as coisas. O que está incluído nessa herança? Paulo escreve aos Colossenses que "nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade". O que isso significa para nós? Apenas isto: que "nele, estamos aperfeiçoados” [Cl 2:9,10].
Em Colossenses, capítulo 1, lemos que toda a plenitude do universo foi criada em Cristo e para Cristo, o Filho do amor de Deus. E no capítulo 2, vemos o lugar que temos nEle. Os filhos estão compartilhando da plenitude do Filho. Hoje recebemos um antegozo disso, pois recebemos de Sua plenitude, graça sobre graça. “No qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória" [1Pe 1:8]. Que glória é essa? É o dia de Sua vinda. Algo da glória vindoura está brilhando em nossos corações agora, pois cremos nEle. A fé traz a glória futura para nosso desfrute presente. A fé em Cristo no céu traz alegria aos nossos corações. Derivamos nossa força dessa união com Cristo na glória, por sermos um com Ele, assim como Ele é um com o Pai. Dele e de nossa comunhão com Ele flui Sua plenitude para nós.
Que privilégio e alegria saber que somos filhos de Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor; que nos tornamos co-herdeiros da glória que o Pai deu ao Seu Filho! Há uma plenitude de força no conhecimento da filiação. Busquemos viver continuamente na consciência de que somos filhos de Deus.
“Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus”.
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